Se.

Há algumas semanas eu fui assaltada. Plena luz do dia, aqui do ladinho de casa, enquanto esperava o ônibus para o trabalho. Havia mais umas dez ou doze pessoas no ponto, fora eu. Estávamos na frente de um hospital super movimentado. Eu respondia uns e-mails. O sujeito foi se aproximando, chegou a dois palmos de mim e mandou: passa o celular. Só o celular. Fiquei olhando um pouco atônita, ainda adormecida. O aparelho bem seguro entre os dedos.

– Quero só o celular.

Fiz que ia guardar na bolsa. O homem segurou meu braço, apertou. Era forte, estava em pé. Eu sentada, vulnerável. Pensei em gritar, mas a voz não saía. Ao meu lado, no ponto de ônibus lotado, olhares pouco comovidos com a cena. Certamente apanharia em público, sem ninguém que viesse em defesa e perderia algo mais que o aparelho velho com tele quebrada, poucas fotos que não pudesse recuperar. Soltei, boquiaberta. Meio besta fiquei ainda sentada olhando a rua, até que uma mulher que estava próxima vira pra mim e diz: ele roubou teu celular, foi?

Surreal. Foi a deixa que precisava para voltar pra casa, tomar um banho e peregrinar pelas lojas da operadora atrás de uma que me transferisse a linha para um chip novo.

Os subjuntivos e condicionais passaram o dia me atormentando, era como estar de volta às aulas de gramática francesa: Peut-être que. Talvez a mancha que me fez trocar a camisa fosse um sinal. Se eu tivesse acordado mais cedo, não teria perdido o ônibus de dez pras oito. E se não tivesse voltado e trocado os sapatos. Deixasse para tomar café na Câmara, não em casa. Ou quem sabe se tivesse logo tomado o ônibus para o terminal, ao invés de esperar a linha direta. Ou simplesmente parasse a compulsão pelos e-mails uma horinha só por dia, uma hora que fosse.

Já tinha até parado de pensar nisso, mas uma outra história me fez lembrar.

Todo dia, ao acordar, me empenho no trabalho de não cogitar. Dissolver as equações afetivas que insistem em que (Y – Tx) seja igual a (t . Y), onde “T” representa a tensão causada por x e “t” o tempo de relacionamento tranquilo com o sujeito Y. Fugir da matemática emocional perigosa, que nos leva a assumir que não foi uma incompatibilidade ou a falta de amor entre Y e a apaixonada A que levaram ao término previsível desde t = 0. Mas que em dado momento n < final da relação, alguma conduta qualquer de A tenha produzido o descenso da curva no gráfico.

Sem advogar em defesa da inevitabilidade do destino, coisa que estou um tanto longe de acreditar. Mas por que a gente insiste tanto em se responsabilizar pelo que foge ao nosso arbítrio? Se já soubéssemos mesmo, lá atrás, do ponto de inflexão de um episódio qualquer, por que não nos antecipamos? E ainda na possibilidade de um descuido eventual, de uma desatenção, de não termos sido suficientemente prevenidas, por que é tão fácil perder a mão entre a autocrítica e a penitência?

E se a gente consegue preencher linhas de tanta racionalidade, o que falta para simplesmente calar as vozes na cabeça?

Dedo podre.

Estava distraindo a cabeça de um texto pesado que escrevia quando um amigo sugeriu em seu perfil de Facebook classificar os homens heterossexuais em três grandes grupos, arquétipos ideais possíveis: Uma larga maioria dos que só se relacionam com mulheres sexualmente; aqueles que buscam relações afetivas (amor e amizade) com mulheres, mas são incapazes de empatia plena; e um último grupo quase marginal dos legitimamente capazes de nos compreender.

Não é que eu tenha uma predisposição de discordar de assertivas masculinas referentes a nós, mulheres. Isso também. Mas pensando na minha experiência o esquema parecia insuficiente, ainda que se pretendesse generalizante. E pra tentar compreender o raciocínio exato que me incomodava, me propus a construir um esquema a partir do corpus a que tive acesso ao longo desses anos.

A verdade é que não sei se compactuo com essa ideia de separar os homens heterossexuais entre os capazes e os incapazes de se relacionar com mulheres. Não só porque a distinção sugere que haja algo de fisiológico onde existe misoginia, mas porque o subtexto deste dístico é a inabilidade das mulheres para escolher aqueles homens que prestam.

É o tal do dedinho podre.

Separar sensíveis e cachorrões não dá conta da vida real, justamente porque se baseia em uma falácia: a tal “essência feminina”, grande mito do patriarcado, à qual somente os homens mais evoluídos tenham a capacidade de se conectar. E ah, se os dramas hétero fossem só emocionais. No fundo de tantos destes machos sensíveis, quantos parceiros egoístas e sexualmente desestimulantes não habitam!

Mas vamos colocar o pé no chão, no que é material e mantém as relações afetivas e sexuais como relações de poder. E mesmo sob a pena de cair no reducionismo, queria propor um outro modelo. Separar os machos hétero em três grupos genéricos e que eventualmente encontrem intersecções: aqueles que chegam em casa e encontram a casa limpa, imensa maioria entre os homens adultos; os meninões, não necessariamente jovens, que vivem tranquilamente em meio à sujeira, parcela considerável da espécie, felizmente em geral transitória; e por fim as figurinhas cromadas, os raros homens que limpam o próprio banheiro e repartem a guarda das crianças fifty-fifty.

Haverá qualquer relação entre a realização de trabalhos domésticos consciente e voluntariamente e a capacidade afetiva de um homem? Ou pelo menos seu desempenho sexual, a atenção aos desejos da parceira? As amostras para a pesquisa ainda são parcas e não me arrisco mais com análises preliminares. De todo modo, parece uma hipótese que vale a pena testar.

Brevíssimo dicionário porteño.

Algumas notas sobre a língua falada em Buenos Aires, resultado de relacionamentos lost in translation e uma noite insone. Aberto a contribuições.

FONÉTICA:
y, ll /xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx/
ch /me dá um tchu, me dá um tcha, me dá um tchutchatcha tchutchutcha/
r—- /Rratinho-nho!!/
—r- /rr/
–rr- /rrrrrrrrrrrr/

NOÇÕES BÁSICAS DE GRAMÁTICA E SINTAXE:
Usted é um pronome para tratamentos formais e até considerado meio caipira por alguns jovens da capital. “Tu” não existe na gramática local. Para se camuflar, use “vos” (vôs, com o Ó grave).
– Donde sos [vos]?
– Soy de … y vos?
Hola! Prefira “Como andas?” a “qué tal?”.

Dale! Resposta afirmativa universal, demonstra compreensão. Para agradecer informações: “Dale! Muchas gracias”.
Ya está! Taí, é isso aí, prontinho, ok. “Ya está, dale!” (equivalente possível a “isso aí, valeu”).
Puede ser?
A ver… Resposta evasiva padrão, indagação (vamos ver…).
Tranqui, tranqui… (redução de “tranquilo/a”) Sossega aí, não se avexe.

VOCABULÁRIO ÚTIL
Auto = carro.
Boludo = bobo, babaca, escroto, a depender da entonação (evitar).
Boludez = imbecilidade, bobagem, besteira.
Canchera/o = gaiata/o. “Ponerse canchera/o”.
Chamuyo = paquera, papinho entre uma música do tango e outro.
Charla/ charlar = conversa, bater papo.
Corer (prouncia correr) = trepar.
Correr (pronuncia corrrrreerr) = correr.
Cubierto = talheres.
Despacio/ despacito = devagar, devagarinho.
Enojar/ Enojada/o = torrar a paciência, brava/o, de saco cheio. “No te enojes, nene”.
En un rato/ un ratito = em um piscar de olhos, em um minutinho.
Enchufar = botar na tomada.
Flaca/ flaquita = menina, gostosinha.
Igual = também. Substituir “yo también” e em início de frase, no sentido de “da mesma forma”.
Nena/e = menina/o, apelido carinhoso.
Olor = cheiro, odor.
Pegar = bater.
Pibe = cara.
Propina = gorjeta.
Protección = camisinha
Quedar/ quedarse = ficar, “donde queda” (onde fica), permanecer em determinado local, passar a noite. “Me quedo hasta el…” (fico até dia…).
Te quiero = te amo. Não vai sair dizendo por aí achando que tá seduzindo. Eles levam a sério, ó.
Tomada/o = bêbada/o (mais corrente que borracha/o)

Facebook:
Estar en facebook.
Enviar/ aceptar una invitación.
Subir algo al muro
= postar na timeline.
Le gustar algo = curtir.

Onda:
Ponerle onda = fazer graça, se divertir.
Buena onda = massa.
Mala onda = coisa ou pessoa chata, mala (“muy mala onda tu amigo”).

Ônibus:
Donde puedo tomar el bus? Tomar el (número do ônibus).
Bajar en…

Som:
Sonar/poner fuerte = alto.
Hablar más fuerte = falar mais alto.

Sim.

Aconteceu. A primeira das amigas de colégio casou há cerca de um mês em mega festa no clube da cidade. Docinhos monogramados, vestido de princesa e sapatos com cristal. Buquê disputadíssimo. Depois dela, outras cinco da mesma turma que já estão com o pé no altar. Chegaram os “vinte e”, os tempos de definição. De amadurecer ideias, rever convicções adolescentes e corrigir os ingênuos “nunca”.

Chegaram para elas e pra mim também. Assumi meu compromisso.

Eu comprei uma bicicleta.

Confesso, não foi meu ato mais altruísta ou passional. Foi um cálculo pragmático, estimulado pela oferta de 10 milhas para cada real gasto na compra e a nova localização residencial. Solução possível para a necessidade de locomoção barata e rápida para pequenos deslocamentos. E, evidente, incentivo de amigos cicloativistas.

Lembro que nas semanas entre a decisão pela mudança e o voo para Fortaleza, procurando apartamento pela internet, eu fantasiei. Me imaginava em uma daquelas fotos do Sartorialist, em roupas leves de alfaiataria, pedalando até o trabalho. A experiência do calor equatorial, a má condição das vias urbanas e as péssimas experiências sobre duas rodas me desmotivaram completamente.

Antes de finalizar a compra, me cadastrei no aplicativo de aluguel de bicicletas, só para testar. Fui à Beira Mar depois do trabalho, em um ponto tranquilo e seguro. Tirei a bicicleta do encaixe, vacilei para subir. Pensei em devolvê-la na hora e me demover da ideia toda. Mas a vergonha dos funcionários da sorveteria, que na minha cabeça me observavam pelo vidro, através da loja vazia, me fez insistir. Fui em direção ao Mucuripe e andei um bom tanto. Depois voltei e me dei um sorvete de presente. No dia seguinte, fui ao banco e depois ao cinema. De passagem por São Paulo, desci a Consolação, tomei o minhocão vazio e fomos até o samba da Santa Cecília.

Estou timidamente substituindo os ônibus e as solas dos sapatos, ainda fora de horário de rush, com bastante prudência, dando preferência para as ciclovias que estão florescendo por Fortaleza. E sempre durante o dia. Um quilômetro de cada vez. Morro de medo. Mas o sentimento de leveza e liberdade são incomparáveis, e caem bem com o friozinho no estômago.

Antes, eu tinha muitas dúvidas. Agora, se alguém me perguntar, entre casar e comprar uma bicicleta, a segunda opção parece muito melhor negócio.

Pelo direito à indulgência.

“Su naturaleza se negaba a aceptar que el propósito de ser de Adán y ella fuera tan sólo mecerse en la contemplación de aquella eternidad donde últimamente el sosiego se había trocado en una tensa espera, la mirada del Otro constantemente asediándola. La Serpiente se equivocaba pensando que al morder la fruta del árbol serían como Elokim. Dejarían de ser como Él. Se separarían. Harían la Historia para que habían sido creados”

(El infinito en la palma de la mano, Gioconda Belli)

A cozinha contemporânea, como as outras artes, abriga em si as contradições e traços do nosso tempo. A concisão dos espaços. A descontinuidade narrativa. A exaltação do banal cotidiano. Fragmentos, borrões, uma bagunça que justifique nossas cisões e conflitos interiores, resultado de nossa impossibilidade, incapacidade ou a inconveniência de fazer uma só coisa a cada vez.

Semanas atrás cheguei de mais uma viagem curta e exaustiva, morta de fome e com vontade da minha cama, na companhia da cerveja que me esperava na geladeira e uma nova maratona de Sex and the City. Antes de entrar no banho e vestir pijama, revirei a cozinha em busca de uma refeição rápida que harmonizasse bem com minha weissbier.

Como qualquer bom entendedor de cerveja — ou antes, conhecedor de bar — deve saber, cerveja acompanha basicamente alimentos à base de fritura. Tinha em casa um litro de óleo usado (talvez da vez em que fiz orelha-de-gato?) e duas batatas inglesas médias, mas nenhuma disposição de engordurar a cozinha recém faxinada e os cabelos que estava prestes a lavar. Então tentei uma composição de batatas rústicas com toque de contemporaneidade que, graças a deus, deu certo.

BATATAS URBANAS

ingredientes batata fritaPara a porção que alimenta uma pessoa gulosa, você precisará de duas batatas médias. Comprar das limpas no supermercado, porque a vida nas metrópoles não permite ficar esfregando terra de batata na pia. Passa só uma água, por desencargo de consciência, e não tire mais do que os “olhinhos” que forem feios demais. Não descasca! Um desperdício de alimento e trabalho humano. Cortar ao meio, de comprido, então fatiar cada metade em quatro ou cinco tiras nem grossas, nem finas.

Sobre os cortes de batata, que nesse momento devem estar dentro de um recipiente como um prato fundo ou bowl (gurmê para “tigela”), polvilhar um pouco de sal e umas ervinhas, como alecrim. Misturar bem. Em uma panela de tamanho adequado para acomodar tudo, jogar o óleo (novo ou reutilizado), as batatas temperadas e um ou dois dentes de . Fechar a panela com a tampa (muito importante!), ligar o fogo médio baixo e tomar banho. Ligue o exaustor se tiver um.batatas no óleo

O tempo médio de fritura das batatas pode ser calculado com base em um banho bem tomado (padrão brasileiro), lavagem de cabelo (curto) inclusa. Se tiver dúvidas ou não for tomar banho, a cor dos dentes de alho (marrom escuro) é um bom indicativo para saber se estão prontas ou não.

Depois de prontas e com o fogo desligado, retirar cuidadosamente as batatas do óleo fervente utilizando uma escumadeira ou uma pinça improvisada com dois garfos. Mantenha as batatinhas suspensas sobre a panela para escorrer o óleo, e então acomode-as gentilmente sobre papel toalha ou saco de pão, ou qualquer papel que absorva o excesso de gordura. Feche a panela e vá comer suas batatinhas fritas com cerveja. E mostarda. No dia seguinte, coe o óleo usado (com um coador/peneira fina) e tome nota para não usar essa gordura aromatizada para fritar doces. Particularmente, recomendo usar pequenas quantidades para fazer pipoca. O gosto ficou ótimo!

batata fritaEstou com a câmera no conserto e cozinho geralmente à noite, quando a luz é péssima. E sempre com fome. Espero compreensão com as fotos toscas.

Ele podia estar dormindo.

Passando os olhos distraidamente pela timeline há dois dias percebi uma imagem recorrente. Um menininho deitado na praia. Mais um meme, pensei. Mais uma criança fofa fazendo coisas fofas. Se escondendo na areia, brincando na praia. Me deu um quentinho no peito. Um carinho. Tenho pensado muito em filhos nos últimos dois anos. Não já, algum dia em futuro distante. Mas definitivamente sim, no plural.

Então cheguei no trabalho e abri o jornal. E no ritmo duro das linhas editoriais, muito menos fluido que os algorítimos que delimitam o alcance e incidência das nossas redes, aquela mesma foto, o mesmo menino deitado na beira da praia, olhou de novo pra mim.

Aquele menino acabou comigo. Aylan.

Aylan acabou comigo.

Não só ele.

Lembro uma praia feinha em Santa Catarina que frequentávamos porque a família tinha casas na cidade. Itajuba. Era um mar brabo. Pela manhã, a areia mal aparecia sob as algas trazidas do fundo. Flutuando soltas na água, elas abraçavam nossas pequenas pernas que tentavam a todo custo evitar os buracos. Era aflitivo.

Para quem vem da terra firme dar um mergulho, a perspectiva de ser tocada pelo mar é quase um insulto.

Não posso com aquelas fotos de Aylan, não posso com as ilustrações, com os poemas. Porque o choque cândido de uma morte de criança não consegue apagar da minha cabeça a praia de Itajuba. O volume de algas mortas, carregadas pelas ondas. Aquela massa disforme, escura, volumosa, manchando a costa branca. Um horror sem qualquer doçura, qualquer sutileza.

Mi Buenos Aires querido

“me jode confesarlo/ porque lo cierto es que hoy en día/ pocos/ quieren ser tango”

(“Bandoneón”, Mario Benedetti)

Há uns seis anos eu fui parar meio que por acaso em um curso de tango. Foi por essa época que voltei a Buenos Aires, em companhia de um amigo querido. Tínhamos um combinado antigo a cumprir, vontade de conhecer as milongas porteñas e uma promoção de passagens em frente a nós. E não tínhamos na época muitas contas pra pagar.

A lembrança do meu primeiro contato com a cidade, em 2007, não era lá muito boa. Viagem curta, sem planejamento, em ocasião de um sorteio que minha mãe ganhou. Mas adolescente nunca gosta de nada mesmo. Depois daquele outono em 2010 aconteceu um click dentro de mim. Baires (para os íntimos) é um lugar para onde sempre volto e quero sempre voltar. Onde vivi muitas histórias e digeri outras tantas. Onde me sinto em casa fora de casa.

Essa frequência e intimidade dá a muitos amigos a sensação de que tenho muito a dizer sobre a capital argentina e sou das primeiras pessoas que consultam ao planejar visitar a cidade. A verdade é que sempre fiz a linha turista flaneur, que vira e mexe encontra um lugar encantador ao se perder por não saber ler o mapa, mas em geral, esquece nome e localização.

Isso até que um dos zilhões de programas de fidelidade em que estou inscrita resolveu dar pontos por resenhas publicadas e eis que surge meu perfil no tripadvisor (dá uma moral!) e uma nova experiência turística, consciente e ordenada. Pelo menos um pouquinho. Aí resolvi trazer pro blog alguns compilados de viagem, pra não ter mais desculpa e enrolar a vida quem me pede informações. Evidente que tem alguns segredinhos que, por enquanto, só no tête-à-tête.

tango

LA VIDA ES UNA MILONGA Y HAY QUE SABERLA BAILAR

Porque é triste demais estar sentado enquanto todo mundo toma a pista.

Apesar de compartilhar com Montevideo a história e origem do tango (porteño, aliás, se refere às duas cidades portuárias no Rio de La Plata), a impressão que tenho é que Buenos Aires respira o ritmo de um jeito diferente. É como se conhecer esses códigos — que são muito mais que passos — ter consciência desse conjunto de movimentos e posturas e subtextos, te abrisse um mundo na cidade para além dos bailes.

Estar em Buenos Aires e não entrar em contato com o tango (e isso é exatamente o oposto das grandes casas de show com churrasco pra turistas, ou tirar foto com chapeuzinho no Caminito) é perder a essência da cidade. É quase nem ir. E para aqueles que não sabem nem por onde começar, eu resolvi criar um pequeno roteiro.

Para quem já dança e para quem não dança, há muitas casas que, antes do baile, oferecem aulas para iniciantes e iniciados a preços baixos (em geral, o ingresso da milonga contempla a aula e fica entre 50 e 70 pesos). Há um site maravilhoso chamado Milonga Hoy que indica todas as milongas do dia, se haverá aula ou não, se é paga ou gratuita. Em geral a vida em Buenos Aires começa bem tarde (ou bem cedo na madrugada), então vale a pena, depois de acordar da soneca de fim de tarde, conferir se há algo bom pra fazer. Pensei um pouco antes de sugerir alguns endereços que eu gosto e que ilustram a diversidade e vida do tango argentino hoje:

La Viruta — aberta praticamente todos os dias, a Viruta é a milonga por excelência. Sempre lotada, o espaço pra dançar é reduzidíssimo, o que favorece quem caminha bem e abraça gostoso (e, afinal, precisa de mais que isso no tango?), sem muitos artifícios. O salão reúne de iniciantes a super profissionais. Lá pelas quatro da manhã, a pista enche novamente com os egressos das milongas vizinhas. É uma energia, ganas de bailar hasta que rompan los zapatos, que justifica toda a fama do lugar. No site há a grade completa de clases (não só de tango) e costumam receber ótimos professores! | Armenia 1366

La Bicicletao local tem acesso fácil pelas ciclovias de Palermo e estacionamento para as bikes no jardim. Começou como uma prática descontraída de jovens milogueiros que iam de bicicleta dançar, de onde veio o nome. Acontece toda segunda-feira e é uma das milongas mais buena onda da cidade, reunindo gente de todo canto do mundo, de diferentes níveis de habilidade. Os vários sofás ao redor da pista contribuem pra um ambiente confortável, de conversas com desconhecidos que viram danças e amizades. As fofas Nati e Juli comandam a aula para iniciantes. Nunca fiz, mas já cheguei cedo e pude assistir um pedacinho. | Gorriti 5417

El Yeite “para llegar hasta el cielo hay que cruzar el infierno”, me disse uma sueca com sotaque irrepreensível na porta do número 4175, Avenida Cordoba. Atravessamos um longo salão escuro onde muitos corpos se encoxavam ao ritmo de bachata e subimos uma escadinha para chegar à milonga. Pista boa, não muito cheia e música excelente. O Yeite é daqueles clubes de tango dos jovens bonitos que dançam muito bem. Quem já dança, tem que provar. Para quem tá começando, há opções mais interessantes para as noites de quinta. | Cordoba 4175

Salon Canning — um salão lindo, que recebe apresentações de grandes nomes do tango, dançando ou tocando (a orquesta Color Tango é quase de casa!) e pertinho do subte Scalabrini Ortiz. Só isso, com um copo de fernet-cola na mão, já faz a noite. Pra quem dança, o Canning é sede de algumas das melhores milongas da cidade, como a SoHo Tango (Jueves) e Parakultural (Lunes y Viernes). Fica a poucas quadras da Viruta, onde é de praxe pena esticar a noite, dançar mais um tanto e esperar as padarias abrirem para comer uma medialuna fresquinha antes de voltar pro hotel e se afundar na cama. | Scalabrini Ortiz 1331

El Beso — um lugar plural. Nos tradicionalíssimos Martes de Cachirulo, homens e mulheres ocupam lados opostos do salão e se cabecean para dançar. Nas sextas-feiras, o clube ferve com a Marshall, milonga queer. Tem que conhecer! | Riobamba 416

La Glorieta — nos finais de tarde dos finais de semana, a glorieta do parque Belgrano recebe uma prática de tango pra lá de charmosa. Mesmo num frio desgraçado do inverno, o tango resiste. Só não acontece se chover. | Parque Belgrano

Sunderland — o tango começou assim, com vizinhos organizando uma quadra esportiva para receber a orquestra que passava pela cidade e dançar ao som de tango e jazz. Ainda hoje, nos subúrbios de Buenos Aires, vários clubes mantêm  milongas regulares, com comida caseira gostosa e barata, frequentadas sobretudo por moradores da região, gerações de famílias que se conhecem e dançam juntas há muitos anos. Aos sábados, no Sunderland acontece a milonga Malena, que além de um clássico de Troilo, é o nome da filha dos organizadores. Um pouco difícil de dançar, por se tratar de uma reunião de conhecidos de longa data, mas com apresentações sempre incríveis. Como esta, há outras milongas do tipo. Ficam longe que é o diabo e às vezes são um pouco frias no inverno, mas vale a experiência. | Lugones 3161

Receita de família.

“Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida./ Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.” (“Autonomia”, Wislawa Szymborska)

Quando meu pai mudou, meu primeiro impulso foi ordenar a cozinha. Até então, os dezoito anos e meio, segundo semestre da faculdade de Letras, aquele era para mim um território estrangeiro. Meu objetivo maior era alocar a velha geladeira, que sempre residira na sala, no cômodo mais adequado. Para isso, precisei me aventurar pelos armários.

Era 2010. Fazia pouco mais de um ano da morte da Vó Daize. Enquanto ainda era viva, toda vez que a visitávamos em Minas Gerais, o caro voltava atolado de compras de supermercado. Despensa cheia na minha família não era luxo. Era apenas memória de imigrantes muito pobres, que enfrentaram guerra e inverno rigoroso no Leste europeu. Acervos de enlatados, grãos, compotas, conservas. Tudo o que eu encontrei naqueles armários quase intocados de apartamento de pai solteiro e filha adolescente que mal e mal comiam em casa, vencido há mais de ano.
Já de posse da cozinha, com os armários limpos, eu resolvi abrir o apetite para as receitas que minha Vó não teve tempo de ensinar, e que não tive maturidade de provar enquanto ela era viva. E arriscar os primeiros passos na cozinha com um prato tradicional da família, trazido da Ucrânia clandestinamente em um porão de navio, junto com Tataravó Joliana.PIEROGI (receita ucraína)

pierogi
Pierogi (ou vareniki) é um pastelzinho cozido. As receitas são várias, a depender do país e da cozinheira. Para fazer um mundo de massa, vai 500 gr de trigo (farinha de trigo), 2 gemas de ovo e água até dar o ponto em que a massa fica lisinha e desgruda da mão. Aliás, bom contar com ajuda para ir molhando a massa. Lembrar de ter farinha extra para polvilhar na mesa e sobre a massa para não grudar.
Depois que deu o ponto, tem que bater com vontade. Sovar, como se fala. Vide o vídeo didático abaixo, estrelado por mim, direto de 2011:

Lá em casa, a gente come pierogi de chucrute. Chucrute, pra quem não sabe, é repolho azedo, ou “curtido”. Eu até aprendi a fazer com meu avô, antes dele morrer. Mas prefiro e recomendo comprar pronto no supermercado. Para montar o recheio, refogue cebola picada até dourar um pouco e misture meio vidro de chucrute, mexendo no fogo por mais um tempinho. Esse chucrute refogado deve ser misturado a um purê de batatas. Sem sal, manteiga, leite ou qualquer artifício! Somente descasque as batatas (6 batatas médias para um mundo de pierogi), cozinhe em em panela com água e, quando estiverem moles, coloque as batatas em uma vasilha e esmague as batatas!
Apesar de o chucrute ser salgado, é bom colocar um tiquinho de sal. Vai provando.

Enquanto você fez tudo isso, a massa sovada ficou descansando e agora é preciso tirar dela pequenas bolinhas e abrir uma por uma com um rolo de macarrão ou garrafa apropriada. O procedimento de separação da massa é ilustrado no vídeo logo abaixo. No centro da pequena circunferência de massa, deposite uma colher de recheio. Dobre no meio e amasse as bordinhas com atenção, para que o recheio não vaze. Que nem um pastel.

Prontos, é hora de cozinhá-los em uma panela funda com muita água fervida (pode até aproveitar a água da batata, eu acho). Não esquece de umas pitadas de sal na água. Vá mergulhando os pierogis aos poucos. Leva uns cinco minuto para ficar pronto. Pra tirar da água, só usar uma escumadeira (aquelas colheres enormes furadinhas).
Minha vó e minha bisavó serviam com molho de carne. Eu faço assim: cubos médios de carne bovina refogados na cebola e alho; uma pitada de sal, uma pimentinha do reino, um punhado de ervas aromáticas (gosto de alecrim, tomilho e manjericão) e tomate picadinho.
É de comer até dizer chega e dormir o resto da tarde.
TEMPO DE PREPARO: vai toda uma manhã. / QUANTIDADE DE LOUÇA SUJA: um absurdo. Mas a satisfação compensa.

Feliz dia do “cobram 10%?”, “tá incluso?”!

Por acaso, sorte ou infelicidade (longa história), estive duas vezes na Argentina esse ano. Duas semanas em fevereiro, uma em julho. Nesta última viagem, estiquei ainda uns dias no Uruguay, entre Montevideo e Punta del Leste. Fiquei pensando como a fronteira é larga.

Não que a Argentina (em particular, já que não conheço a história uruguaia) tenha qualquer coisa para se orgulhar de seu processo de abolição da escravatura. Um artigo interessante pode ser encontrado aqui, no Geledés. Mas é revigorante, e um tanto constrangedor para quem vem de uma cultura ainda tão escravocrata, estar em um país onde as relações de trabalho são mais delineadas, em que a propina (gorjeta) é coisa séria e disseminada entre distintas classes sociais, não sendo raro pessoas visivelmente pobres darem moedas ao funcionário da empresa de ônibus que coloca sua mala no compartimento de carga.

Tenho alguns amigos em Buenos Aires. Perfil classe média, jovens adultos assalariados. Nenhum tem diarista, e antes que sugiram, não penso ser em razão da crise crônica do país. Nas primeiras viagens era estranho. A maioria das contas não vêm com taxa de serviço inclusa — e isso quando vem a conta impressa. Era tão automático pra eles deixar uns pesos a mais que eu, que ainda tinha a vantagem de pensar com uma moeda muito mais valorizada, morri muitas vezes de vergonha de mim mesma.

A gente é muito mal acostumado por aqui a contar o dinheiro certinho e não deixar mais que o estritamente indicado. Dividimos com tranquilidade as garrafas esvaziadas antes da conta chegar, mas tendemos a esquecer as tantas horas de serviço prestados a nós — e não ao dono do estabelecimento, não pagas por ele — dos garçons. Invariavelmente sobra para os últimos a levantar da mesa. Os dizeres “não cobramos 10%” são atrativos fáceis, mesmo em meios progressistas. Como assim?

Há alguns anos vivi uma experiência vegetariana. Numa madrugada pós-balada, perto da USP, enquanto minhas amigas se esbaldavam no McDonald’s, eu encontrei uma temakeria aberta que oferecia 10% de desconto a estudantes. Propaganda enganosa. O tal desconto era simplesmente a supressão do 10% da conta (que aliás, são opcionais, não são?). De madrugada, não havia um responsável com quem reclamar. Paguei o equivalente aos atendentes e nunca mais voltei ali. Aconteceu pouco depois de um episódio no salão de beleza, quando descobri que a dona desviava o troco que deixava para a depiladora. Um horror.

Curioso que foi em uma rede de restaurantes metidos a finos, que se gabam de não cobrar 10% e remunerar bem seus trabalhadores, o pior atendimento, o mais relapso e misógino, que presenciei nos últimos tempos.

Vivendo exclusivamente do próprio salário e passando a cuidar da própria casa sozinha, essa tem se tornado uma questão importante e frequente pra mim. Restaurantes que indicam que se deixe a gorjeta em dinheiro, diretamente com garçom ou garçonete, ganham pontos comigo fácil. Eu volto e indico com prazer. Tive uma formação filosófica escolar muito crítica à noção de hábito. Tenho repensado muito, deve ser a idade. É hábito você perceber o trabalho dos outros que o mundo insiste em invisibilizar.  E desenvolver esse hábito é libertador demais.

Casa nova

Enquanto escrevo esse post, me cadastro no programa de fidelidade do supermercado perto de casa, que nunca frequentei. No quarto há caixas de mudança reviradas, ainda sem alternativas para desaparecer, e a mala de viagem parcialmente esvaziada.

Mudar é uma chance sem igual de fazer curadoria de memórias. De jogar fora o que não serve, o que não tem uso, o que não convém. Passei por isso há pouco tempo, então o grosso dos souvenires pitorescos não existia mais. Talvez a coisa mais interessante fosse minha lista de desejos para o ano, da qual 80% já não fazia mais sentido.

Há mais de um ano eu deixei São Paulo. Uma história de amor que durou oito anos, mas já começava a dar sinais de esgotamento. Cheguei na até então desconhecida Fortaleza sem saber o que esperar, sem saber por quanto tempo ficaria por aqui, e depois da empolgação oficial, estava resolvida a voltar. Até que aconteceu. Depois de um intervalo relativamente longo sem visitas, SP e eu nos reencontramos, e depois de um final de semana de paixão, antes mesmo do amanhecer, nos vimos como somos. Os olhos de ressaca de cerveja inflacionada refletidos na privada sem água para descarga.

Por mais que um resista, chega o momento em que a relação que já chegou ao fim simplesmente se dissolve no ar, como se nunca tivesse existido. Quando não há mais desejo, auto engano, não há mais truques que sustentem a narrativa. São Paulo não era mais minha casa. Fortaleza tampouco. Era preciso achar esse lugar.

Dizem que a busca de um imóvel deve começar com a localização: escolha sua cidade, o bairro, a rua em que quer morar. Da porta pra dentro, tudo pode ser modificado. A estrutura urbana não. Este talvez seja um bom conselho para quem tem orçamento largo, para quem pretende comprar um imóvel e tenha como investir em reformas pesadas. Eu tinha o endereço ideal com um aluguel relativamente baixo. Prédio com piscina, cinco quadras da praia, próximo a duas avenidas movimentadas e muitas ciclovias. Nada disso dava ao apartamento mal ventilado, cheio de infiltrações, pragas domésticas, em imobiliária fuleira, algum futuro.

Não dependia só do quanto do meu salário eu queria e podia gastar para morar. Os bons apartamentos até 40m² do Meireles e Aldeota estavam além da minha renda, segundo as imobiliárias. E assim eu vim parar em um apartamento mais barato, com banheiro e cozinha amplos, bem ventilado e com varanda, descobrindo um bairro que havia prematuramente riscado da minha lista logo que cheguei por aqui.

Se tem um conselho que eu daria a alguém que está buscando realizar o sonho do aluguel próprio é: busque um apê que você não odeie. Faça o exercício mental: se comprasse o apartamento e tivesse orçamento ilimitado, qual seria sua primeira obra? Se em menos de dois segundos você visualizar paredes derrubadas, trocar todas as louças do banheiro ou qualquer outra reforma estrutural, só tem frustração te esperando durante os 30 meses de contrato. Como das pessoas, você tem que gostar de um imóvel alugado pelo que ele é, não pelo que poderia ser após uma visita da equipe do GNT.

Antes de viajar (passei dez dias entre Argentina e Uruguay), preenchi o formulário de ressalvas à vistoria. Nem tudo está “em perfeito estado de conservação”, um pedaço do batente da janela do quarto até quebrou em cima de mim quando instalava a persiana e a ducha vagabunda está no topo da minha lista de coisas a resolver, junto com comprar uma sapateira. Agora, o piso cor de encardido do banheiro não me deixa constrangida ao receber visitas, como o banheiro do apartamento anterior fazia.

Mudar de casa à vezes exige mudar os hábitos. Estou mais longe da praia, embora haja linhas de ônibus direto para o Dragão do Mar e a Beira Mar. A praça aqui perto é feiosa, mas bastante frequentada por corredores pela manhã. Ao invés da Aliança, convém estudar no Centro de Cultura. Os bares são outros: menos cerveja artesanal, mais música e comida populares. E a rede de supermercados que frequento desde 2010, quando passei a morar sozinha, dá lugar a outra bastante parecida, cujo programa de fidelidade pode ser somado ao de milhagens. Nada mal. Ponto extra: Benfica é reduto das melhores batatas fritas de rua do mundo. Um copaço do mão-suja por 3 reais, estou no céu.

Mudança não é questão de ir. É chegar. A sensação de estar voltando pra casa ontem, ao tomar o avião, não tem cheque caução que pague.